quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Com o Funk ostentação, o morador da periferia sonha em ser playboy


"Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor"
(Paulo Freire)

Eu acho o ritmo do funk muito interessante. Particularmente gosto muito da sua batida. Quando estou numa festa e começa a tocar um funk não hesito em começar a dançar. Creio que uma das músicas que melhor traduza o funk seja aquela que diz “É som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado”.

Nunca gostei daqueles funks com linguagem excessivamente chula, independente do ritmo. Gosto muito de músicas ao estilo de "Abre Alas" e "Ela é top" do MC Bola, de "Se ela dança eu danço" e outras do MC Leozinho, algumas do Naldo, MC Koringa e alguns outros. Sei que boa parte dessas músicas possuem letras muito bobas, mas para mim são até toleráveis devido ao excelente ritmo delas.

De uns tempos para cá comecei a ver uma nova cultura surgindo no funk, a do "Funk Ostentação". Ouvi um pouco dessas músicas e vi que algumas possuem até um ritmo muito gostoso de ouvir. Mas fiquei horrorizado com as letras delas e não consigo curtir essas músicas devido ao conteúdo altamente destrutivo contido em suas letras.
Ostentação, palavra que eu gosto de ouvir
Se me quer do seu lado, tem que me fazer rir [dar dinheiro]
Vem me buscar de Hornet, R1, RR [motos caras]
Me dá condição
Deixa eu totalmente louca, chapadona de Chandon [marca de champagne]
Gosto de gastar, isso não é novidade
Hoje eu já torrei mais de dez mil com a minha vaidade 

(Trecho da música "Mulher do poder" cantada pela Mc Pocahontas)
As letras mais comuns de funk, quando cantadas por homens, em sua maioria falam apenas sobre transar com mulheres gostosas. No funk ostentação as letras falam sobre ter veículos potentes, ter roupas caras, bebidas caras, muito dinheiro no bolso, dentre outras coisas, para...  transar com mulheres gostosas.

Clipe da música "Como é bom ser vida loka" de Mc Rodolfinho 


As letras mais comuns de funk, quando cantadas por mulheres, em sua maioria falam sobre o direito de elas transarem com quem quiserem, em ser amantes ou possuem letras de provocação a outras mulheres. No funk ostentação as letras falam sobre ter roupas de grife, bolsas e outros acessórios de luxo caríssimos, muitas jóias, dentre outras coisas, muitas vezes conseguindo isso através da sedução de homens ricos, como mostra a letra da música da MC Pocahontas citada a pouco.

Clipe da música "Mulher do poder" de Mc Pocahontas


Como se pode perceber, o funk ostentação não fez uma mudança radical nas letras das músicas, apenas acrescentou os elementos de ostentação de riquezas nos tipos de letras já existentes nas músicas desse ritmo. 


Sonhando serem playboys

O que me parece ser uma mudança radical nessa cultura que o funk ostentação traz é que o antigo ódio aos playboys e patricinhas, normalmente sentidos pelos moradores de periferia, pelo fato de serem discriminados por eles, converte-se em admiração. O morador da periferia parece não ter mais raiva do playboy. Ele quer ser um playboy e estou falando isso no pior sentido do termo.

O playboy, aquela figura rica, esnobe, que ri daqueles que não são tão ricos quanto ele, que quer esfregar sua riqueza na cara de todo mundo, que chega num bar rodeado de "amigos" (tipo o rei do camarote) e pede as bebidas mais caras numa tentativa de mostrar que é mais poderoso que todos ali naquele bar. Essa figura asquerosa parece estar se tornando o modelo a ser perseguido. O mesmo posso dizer das meninas com relação às patricinhas.

Ao ver clipes de funk ostentação com 20 milhões de acessos, eu fico pensando em quantas dessas pessoas estão assistindo em admiração às letras das músicas e ao que elas representam e quantas estão assistindo apenas por causa das mulheres com corpos esculturais rebolando.


A cultura do consumismo levada a outro nível

O funk ostentação é um estilo musical que é um reflexo do tipo de sociedade em que vivemos hoje: a sociedade do consumo. A grande mídia, a todo momento, nos sugestiona a acreditar que só seremos incluídos na sociedade se formos “bons consumidores”. Para ser legal você precisa ter aquele tênis, as roupas daquela grife, precisa ter aquele tipo de carro, precisa gostar de frequentar aqueles lugares, dentre várias outras recomendações que vêm sempre em mensagens subliminares. Além de fazer você desejar ter aqueles produtos, faz você se sentir mal por não possuí-los e admirar (ou invejar) quem os possui.



O funk ostentação entra nesse contexto fazendo o mesmo trabalho que a grande mídia, mas através de uma idolatria do consumismo de forma bem escancarada. Pregam uma forma consumo totalmente insustentável, que leva muitos a ter dificuldades econômicas, como no caso da "IT Girl" Yasmin Oliveira de 15 anos, mostrada no último programa do Fantástico, que faz sua mãe diarista gastar 500 reais num tênis muito simplório, por sentir prazer em estar usando a marca Osklen.

Os pais desses jovens muitas vezes para compensar o excesso de trabalho no dia-a-dia, que os faz passar pouco tempo com os filhos, tentam compensar sua ausência fazendo todos os gostos dos filhos, alguns ficam bem endividados por causa disso. Só que não percebem o círculo vicioso em que se metem. Eles passam pouco tempo com os filhos porque trabalham muito, aí compram muitas coisas caras para os filhos para compensarem sua ausência e depois têm de trabalhar ainda mais num segundo ou terceiro emprego para conseguir pagar todas as coisas caras que compraram para os filhos, aumentando sua ausência em casa e dando prosseguimento ao ciclo.

Mas uma coisa é bom deixar claro, toda essa cultura do consumismo exagerado não é culpa do funk ostentação. Ela já existia antes e continuará existindo depois que essa moda passar. É somente mais um dos elementos dessa cultura, que rapidamente é assimilada pelos jovens da periferia, mas não somente por eles. A grande mídia pelo visto adorou o funk ostentação, pois em muitos dos seus sites vemos várias reportagens sobre os funkeiros desse novo estilo e os mesmos estão presentes com grande frequência nos programas de TV.

Também não considero ruim que as pessoas sonhem em ter uma vida melhor ou até em serem ricas. Isso sempre foi muito comum. As pessoas sempre sonharam em ser ricas. O problema que vejo nessa cultura do consumismo é fazer com que as pessoas orientem sua vida apenas na direção de serem melhores consumidores, que somente se sintam bem se consumirem coisas caras, que sintam prazer em mostrar a todos que elas podem ter esses produtos. Mas o pior é esnobarem e até se sentirem superiores a todos os outros que não podem ou não têm interesse em viver dessa maneira.
"Muitas pessoas gastam dinheiro que não têm, para comprar coisas que não precisam, para impressionar pessoas de quem não gostam." (Will Smith).

Atalhos para o mundo do consumismo

Muitos dos adolescentes infratores, que cometem furtos e até assaltos, os fazem na intenção de comprar bens de consumo caros. Muitos ficam se sentindo péssimos por não terem um boné, um tênis ou uma camisa de marca, aí resolvem encontrar um atalho para conseguirem essas coisas. É por essa razão que alguns entram para o tráfico, pois é a saída mais rápida para um adolescente da favela entrar no "fabuloso" mundo do consumismo.



Seria muito bom se esse consumismo desenfreado passasse após a moda do funk ostentação ou do sertanejo ostentação (o sertanejo universitário está com cada vez mais ostentação), mas isso não vai acontecer. Talvez até suavize, mas não tenho esperanças de que num futuro próximo esses viciados em consumo se tornem consumidores mais conscientes. O buraco é bem mais em baixo. O problema é bem mais sério e está muito enraizado nas mentes da maioria da população.

Os donos do capital incentivarão a classe trabalhadora a adquirir, cada vez mais, bens caros, casas e tecnologia, impulsionando-a cada vez mais ao caro endividamento, até que sua dívida se torne insuportável. (Karl Marx, em 1867)

2 comentários:

  1. Fabiano, obrigada por ter me mandado, muito legal!

    Me fez pensar sobre a minha geração (nossa?) quando já se falava de juventude consumista mas longe de nos enquadrar neste perfil (será?) e em que momento as coisas mudaram (mudaram?), sei lá.. pensando bem... será que as coisas não sempre foram assim apenas com proporções diferentes?

    Somos produto do nosso meio, o acesso a informação de forma globalizada é benéfico assim como danoso e no meu entender a unica arma que temos é a educação, só assim poderemos promover consciência para combater este sistema.

    Outro ponto é a questão de "melhorar de vida". O que significa melhorar de vida para vc pode ser diferente do que pra mim.. os atores do seu texto, pessoas da periferia, assumem que comprar um tenis pode ter mais importancia que comprar um apto (como em um de seus exemplos), será que é ignorância ou será que a satisfação deles passa por outros caminhos diferentes dos meus? Complexo!!!!!!!!

    abraços
    Riva

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  2. Essa é uma discussão bem complexa mesmo. Gostaria de poder responder a tudo isso, mas prefiro parar e refletir mais. Nem sempre temos resposta para tudo. Escrevi esse texto para falar sobre o que me incomodava nessa cultura do funk ostentação. Espero com ele ter ajudado outros a refletir mais sobre os assuntos abordados. Fico feliz que tenha gostado do texto.

    Um abraço.

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